Gordofobia para iniciantes:como saber se eu sofro preconceito?

“Nossa, nunca tinha ouvido falar sobre gordofobia! O que é isso? Pessoas gordas também constituem uma minoria? Mas o que gordos querem?”

Calma.

Se você nunca ouviu falar sobre gordofobia ou se você só viu alguma coisa desconexa por aí, nunca se aprofundou ou tem algumas concepções erradas sobre o assunto (tipo agora vai ser obrigatório ser gordo???), essa série de textos é para você.

Nos próximos 5 artigos que escreverei para esse site, você vai aprender de forma resumida o que é a luta antgordofobia, pra que ela serve, o que ela quer e como você pode fazer parte. Segura na minha mão e vamos lá!

Parte 1 de 5: Gordofobia não é igual a pressão estética

Você deve perceber por aí que existe um tipo de corpo, aparência, cor de pele, cabelo, tamanho, formato, que é visto como “bonito”, deixando para todos os outros corpos a classificação de “feios”, “exóticos”, “estranhos” etc. Mesmo que todos nós tenhamos um gosto um pouco diferente um dos outros, não dá para não reconhecer que há um corpo específico que sempre vai ser valorizado, seja nas relações sociais, seja na mídia. A gente chama isso de “padrão de beleza”, um conjunto de características que definem a forma como você deveria aparentar para ser considerado bonito e desfrutar de um enorme leque de privilégios sociais.

Diariamente, somos bombardeados pela mídia com esses corpos “perfeitos”, pessoas que são reconhecidas pela sua beleza e que representam a casta “bem-sucedida” da sociedade. Você, pessoa que provavelmente não está dentro desse padrão, acaba se sentindo mal por isso, e começa a fazer o que qualquer pessoa faz dentro de um sistema capitalista: consumir. Compra uma assinatura de revista digital que dá dicas de beleza, adquire vários produtos que prometem te deixar linda, se matricula na academia e mais um monte de outras ações que fazem a roda do mercado girar.

Todo esse sistema só precisa de uma coisa pra existir: a sua infelicidade. Muito provavelmente, nem com todos os produtos e serviços do mundo, você vai se tornar aquela pessoa da revista, e o segredo é exatamente esse. Você vai ser pressionada pra sempre fazer essa roda girar, se achando feia, “fora do peso” e tudo aquilo que você ouve por aí e provavelmente fala dos outros e de si mesma. O nome disso é pressão estética.

Perceba que, para falar de pressão estética, vou me direcionar principalmente às mulheres. Isso não quer dizer que homens também não sofram desta pressão – principalmente aqueles que não se identificam com os estereótipos masculinos, como pessoas LGBTs e afins – mas sem dúvida nenhuma, mulheres sofrem em uma escala muito maior que homens nesse quesito.

Dentro da pressão estética, vão falar do seu corpo. Vão dizer que ele é maior do que deveria. Vão te chamar de gorda. Vão dizer que “toda mulher está sempre 3 quilos acima do ideal”. Isso tudo é perverso, doloroso e pode acarretar um número enorme de questões psicológicas…

o que não quer dizer que você está sofrendo gordofobia.

Dentro do espectro possível dos corpos humanos, vemos uma infinidade de variações que vão das mais magras até as mais gordas. O corpo humano é vivo e fluido, e pode transitar nesse espectro de acordo com todas as interações que faz com o mundo. A partir do ambiente, alimentação, relações sociais, genética e outros vários fatores internos e externos, o corpo humano passa a se apresentar em um formato específico, que vai mudando de acordo com a mudança desses fatores.

Mesmo que aparentemente acreditemos que o formato de nosso corpo depende única e exclusivamente da nossa vontade de mudá-lo, a ciência hoje cada vez mais entende que temos muito menos controle sobre o nosso corpo do que acreditamos ter. Por ser um resultado multifatorial, com muitos desses fatores fora de nosso controle, na maioria das vezes, não é possível lutar contra esse sistema de forma efetiva, muito menos mantê-lo sob controle por muito tempo.

Pensando dessa forma, passamos a entender que todos os corpos desse espectro são válidos, afinal, você é só mais um ser humano como qualquer outro, certo?

Errado.

A gordofobia é o sistema que faz pessoas serem julgadas moralmente pelo o tamanho de seus corpos. Esse sistema de opressão escolhe um ponto do espectro dos corpos e o delimita como “normal”, passando a perseguir tudo o que está além deste ponto. Repare quando eu digo que a perseguição é para os corpos além deste ponto. Afinal, nossa sociedade bate palmas para a magreza, seja ela excessiva ou não, mas condena pessoas gordas. Não é exatamente uma preocupação com a sua saúde, mas vou falar mais sobre essa questão num próximo texto.

Quando você é gordo, você é excluído sumariamente do convívio social, e isso está claro no mundo que te cerca. Nada é feito pra você. Cadeiras não te aguentam, catracas entalam, poltronas não te cabem, roupas não são feitas para o seu tamanho. Ser gordo quer dizer não ter direito de desfrutar o mundo, afinal, ele é feito para “pessoas normais”, e você não é considerado normal.

Mas a opressão não está só no mundo material, mas também no mundo subjetivo. Pessoas gordas carregam diversos estigmas, independente de suas personalidades individuais. São vistas como pessoas sujas, relaxadas, preguiçosas. São excluídas do mercado de trabalho como se seu corpo fosse testemunha de sua capacidade. São usadas como forma de entretenimento e retratadas sempre como estranhas, excêntricas, exageradas. Na mídia, pouquíssimas pessoas gordas ganham espaços que não dependam diretamente do tamanho do seu corpo, por exemplo, a gorda engraçada ou a gorda que quer emagrecer.

O que era para ser só mais uma característica de um corpo humano, assim como tantas outras que temos, passa a se tornar um estigma. Se você é gordo, você obrigatoriamente é (adicione vários outros adjetivos degradantes aqui).

Atente para o fato de que até agora, não falei sobre a questão estética de ser gordo, e isso não é por acaso. Pessoas gordas não estão dentro do padrão estético, então é claro que vão ser consideradas feias para aqueles que vivem sequestrados dentro desse sistema. Mas minha escolha por ignorar esse fato nesse texto tem também outro objetivo. Normalmente, pessoas desinformadas acreditam que a luta contra a gordofobia é sobre beleza. É sobre obrigar pessoas a acharem gordos bonitos. E isso não pode estar mais longe da realidade.

Dizer que uma pessoa gorda deve ser considerada bonita está dentro da luta de tentar quebrar o padrão de beleza. De tentar mostrar que o ser humano é bonito pela sua diversidade, não pela sua padronização. De lutar contra o mercado que se alimenta da infelicidade. Pessoas fora do padrão são consideradas feias por diversas características, incluindo não serem magras. Nada disso é gordofobia. É só a pressão estética agindo e dizendo “ou você é assim ou você não é considerado bonito”, ponto.

Estar fora do padrão estético vai, sim, te trazer alguns problemas. Vai, sim, te fazer sofrer se você quiser continuar dentro desse sistema. Mas não vai fazer você ser considerado uma pessoa doente. Ninguém vai dizer que você vai morrer cedo. Nenhuma cadeira vai quebrar com seu peso. Você não vai ser impedido de ir ao cinema por não ter onde sentar ou de sair na rua porque nenhuma roupa te cabe. Mas a gordofobia vai.

Perceba que a gordofobia não é uma versão “agravada” da pressão estética. Toda pessoa gorda sofre pressão estética, por não estar no padrão. Mas nem toda pessoa fora do padrão sofre gordofobia. Você pode, sim, olhar no espelho um dia e falar “dane-se que eu não sou loira” ou “dane-se que eu não tenho barriga negativa”. Mas você não pode olhar pra uma cadeira e falar “dane-se que você não me aguenta, eu vou sentar assim mesmo”. Se você for em uma consulta médica, nenhum profissional vai dizer que sua tosse é culpa da sua falta de depilação. Mas uma pessoa gorda sai até do oftalmologista com prescrição de dieta, sem nem um exame sequer além do visual.

Gordofobia é a visão de que toda pessoa gorda é doente, e pior, é doente porque quer. Afinal, qualquer um pode fechar a boca e emagrecer, né? Se ela não faz isso, é porque é relapsa (“sabe que vai morrer e não faz nada?”), preguiçosa (“não consegue nem levantar pra fazer um exercício!”), descuidada (“desse tamanho, não pode ter nenhum cuidado consigo”), e por aí vai. E o que uma pessoa dessas merece? Lógico, ser humilhada, excluída, desrespeitada. Ser tratada com subhumana, até o momento que ela “caia na real” e resolva se tornar um ser humano novamente.

Percebe como é muito além de só não ser bonito?

Na escala de tamanhos de corpos, é muito difícil dizer onde a gordofobia começa. Não dá pra dizer que a partir de tal peso ou de tal tamanho de roupa, você passa a sofrer gordofobia. Aqui, vale uma reflexão individual. Mesmo que eu não tenha o corpo padrão, será que eu sofro desumanização? Será que o mundo não me cabe? Será que todas as minhas características individuais são apagadas pelo tamanho do meu corpo?

Assim, você descobre se sofre ou não gordofobia.

No próximo texto, vamos falar sobre a questão de saúde e porque a luta também aponta para a gordofobia médica/científica, mas não se restringe só a tentar mostrar que ser gordo nada tem a ver com ser doente.

Até a próxima!

Você não é cheinha, gordinha, plus size… Você é gorda. E tá tudo bem seu empoderamento | Bernardo Fala

Empoderamento. Uma pesquisa feita pelo Instituto Bernardo Fala atesta que 93,87% dos textões de internet possuem essa palavra em algum lugar. Enquanto uns vários tentam buscar a formula mágica para o tal empoderamento, outros criticam a banalização do termo. Banalizado ou não, é relativamente simples entender o que é “empoderar-se“. É só atentarmos para o significado da palavra no dicionário:

Empoderamento (substantivo masculino): Ato ou efeito de dar ou adquirir poder.

Numa sociedade que constrói a ilusão de que seu valor está atrelado a como você aparenta, como você se veste, o que você consome e quem você conhece, que cria uma ambiente hostil para fazer você acreditar que você não é o suficiente e que você precisa se provar o tempo inteiro, o empoderamento nada mais é do que o processo de tentar trazer esse poder pessoal de volta. Aprender que sua vida vale por ela própria, não pelo o que acham dela. Mas, mesmo que tudo isso pareça ser muito óbvio, mudar nossa autopercepção não é tão simples quanto entender algo racionalmente. Depende também de compreender de forma emocional, profunda, o que acaba tornando a jornada um desafio.

Seguir fórmula mágica de empoderamento é que nem comprar roupa de tamanho único: não serve pra quase ninguém. Empoderar-se é um trabalho individual, que depende de revisitarmos nossa própria história. Mas, mesmo com todo esse caráter único, alguns momentos desse processo costumam ser parecidos para um grande número de pessoas.

Se eu pudesse dar uma dica de como começar, sem dúvida seria através da observação. Parar e investigar na sua rotina todas as formas, concretas ou sutis, que a sociedade retira ou nega seus direitos. Você vai começar a perceber que, mesmo que a forma seja diferente para cada uma das pessoas, grande parte dessas ações se baseiam em lógicas parecidas.

No caso das identidades sociais, você vai notar que uma forma muito eficaz que a sociedade tem de atacar um determinado grupo é criando estereótipos, uma lista fictícia de coisas negativas que todas as pessoas daquele grupo supostamente praticam. Por exemplo, dizer que pessoas negras tem tendência maior a roubar (e por isso são perseguidos pela polícia) ou que todo gay é promíscuo (e por isso não pode doar sangue) e diversos outros tipos de comportamentos que são atribuídos a grupos só pelo fato deles terem uma característica específica.

Na prática, isso causa não só um enfraquecimento daquele grupo como um todo, mas também um movimento de rejeição dessas identidades por parte das próprias pessoas que fazem parte delas. Quantos gays você conhece que falam por aí que “pode ser gay, mas não pode ser viado”?

 

E sabe que outra identidade cai nessa armadilha de falar contra si mesmo e muitas vezes nem percebe? Pessoas gordas.

Plus size, gordinha, cheinha, gordelícia, fofinha… são infinitos os termos usados para não falar diretamente sobre seu tamanho de alguém. Falar que alguém é “gordo” parece uma ofensa absurda, como se isso não estivesse só constatando o óbvio. Pior ainda quando todos esses termos, a primeira vista, parecem trazer um lado “positivo” para o ser gordo, o que parece ser ótimo. Mas é só a gente parar para pensar um momento e reconhecer aonde está a armadilha: se eu preciso de um termo pra suavizar o fato de eu ser gordo, eu estou afirmando que ser gordo é algo ruim.

Toda a delicadeza do outro em dizer que “você não é gorda, é plus size”, não é um elogio, mesmo que pareça muito. É a mesma coisa que dizer que uma pessoa negra “é só moreninha”, ou que fulano “é gay mas é macho”. Cada vez que a identidade real é substituída por algo que a suavize ou a “corrija”, aquela pessoa só está reforçando a ideia de que aquela identidade é negativa.

Aqui, voltamos para o empoderamento. Se empoderar-se é “retormar o poder”, não sentir que seu valor está atrelado a opinião do outro, não há retomada maior do seu poder pessoal que ter orgulho de sua própria identidade. Nua e crua, sem rodeios, sem correções e sem amenizações. É entender que dizer “sim, eu sou gorda” só está falando do tamanho do seu corpo e nada mais. Afinal, ser gordo, ser negro, ser LGBT, é somente uma característica que não diz NADA além do que a própria característica.

Ser gordo não te torna automaticamente preguiçoso, doente, feio ou nada daquilo que é normalmente associado a pessoas gordas. Ao contrário, ser gordo e não ser nada daquilo que acham que você é, é a forma mais contundente de mostrar que esses estereótipos não tem qualquer fundamento. E isso não é só para provar para os outros, mas para mandar uma mensagem para você mesmo. Afinal, como você vai começar a aceitar seu corpo gordo se você não tem nem coragem de dizer essa palavra em voz alta ou se identificar com ela?

Imagem do blog GRANDES MULHERES, da Paulinha Bastos

 

Enquanto você fugir da palavra gorda ou aceitar que ela seja suavizada, vai continuar, mesmo que inconscientemente, achando ser gordo algo digno de vergonha ou de ser escondido.

E ai, não se engane, não há empoderamento que resista.

Você é gorda, sim. E tá tudo bem.

A única pergunta que você precisa se fazer antes de querer mudar seu corpo | Bernardo Fala

Nenhuma decisão é óbvia. Nenhuma. Decidir algo é como colapsar todas as oportunidades, possibilidades, variações em um só veredito. É abrir mão de toda uma infinidade de trajetos para caminhar de uma única forma. Claro que, como humanos, precisamos fazer isso diariamente. Ainda não desenvolvemos a habilidade de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo nem nos desdobrarmos em versões diferentes de nós mesmos. Mas então, se nenhuma decisão é óbvia, por que algumas delas nos parecem tão claras e evidentes, como se elas já estivessem decididas antes mesmo da gente sequer pensar sobre aquilo? A resposta é simples: porque elas realmente já estavam decididas.

Não se assuste. Não estou aqui tentando te levar para uma área matrix-harebô da internet, nem dizer que seu destino já está traçado sem você saber. Se existe alguém que toma decisões por você, esse alguém é um ser muito menos cósmico, muito mais de carne e osso, como eu ou você.

Compre isso, coma aquilo, seja assim, pareça assado, não faça aquele, tenha esse. Do alto de nossa ilusão individualista, costumamos achar que somos seres inteligentes e independentes. Pessoas de pensamento forte, que nunca nos deixaríamos ser influenciados por toda a enorme onda de obrigações implícitas e “sugestões amigáveis” que nos rondam. A verdade, queridx leitorx, é que nem a pessoa mais inteligente do mundo está imune a algo que não só nos domina, mas também é reforçada por nós mesmos: a cultura em que vivemos.

Não se engane, você é um produto do lugar que você nasceu, da família que você conviveu, dos programas que viu, dos livros que leu. Aquele episódio descompromissado da sua série favorita não era só uma forma boba de te manter entretido, mas também um ação de reforço dessa cultura. Não porque é uma forma maligna e conspiratória para não te fazer perceber nada além daquilo (mesmo que algumas vezes, pareça exatamente isso), mas porque a cultura se constrói sobre ela mesma, e está sempre se autoreferenciando.

Pensa só: tudo que você é hoje, é resultado de toda a sua história. Todos os seus sentimentos, seus desejos, seus pensamentos, tudo, é parte e foi formado pelas suas experiências. E se toda essa história se passou dentro de uma única forma de ver o mundo, é muito provável que você só conheça essa maneira de viver, e vai encontrar na sua vida diversos argumentos para reforçar essa forma como “certa”.

A chave é tentar perceber que nossa história nem sempre (quase nunca) é algo natural e expontâneo. Toda a cultura a qual você foi exposto a vida inteira, foi moldada a partir de determinados pensamentos, padrões, crenças, as quais você, mesmo que não se identifique internamente, entende que são normais. Essa condição humana, de se formar a partir da cultura, é ruim? Não! Isso tudo seria maravilhoso se a gente fosse exposto a pensamentos, pessoas e histórias diversas, mostrando a riqueza da vida humana. Só que eu sei e você sabe que não é bem assim.

Ver os mesmos padrões e as mesmas formas de viver o tempo todo retratado em tudo quanto é lugar, uma hora nos leva a acreditar que aquela é a única forma de viver. E como já nascemos imersos nessa cultura, muitas vezes é impossível perceber que tem algo fora dela. Sabe aquela história de que o peixinho nunca reconhece o aquário em que ele está preso, e pra ele, aquele aquário é o oceano?

“Ah, Bernardo. Mas eu posso estar dentro da minha cultura mas buscar conhecer coisas fora dela né. Não é só porque as pessoas a minha volta pensam de uma forma que eu vou pensar também”.

Não estou dizendo que você não tem seus pensamentos próprios. Mas a cultura nos forma até nas questões mais sutis. Para provar isso, vamos fazer um exercício que encontrei um dia na internet e que acredito ser ideal para usarmos nesse momento.

“Pai e filho sofrem um acidente terrível de carro. Alguém chama a ambulância, mas o pai não resiste e morre no local. O filho é socorrido e levado ao hospital às pressas. Ao chegar no hospital, a pessoa mais competente do centro cirúrgico vê o menino e diz: ‘Não posso operar esse menino! Ele é meu filho!’.”

Isso quer dizer que na verdade a criança era filha da um casal gay? Ou não era o mesmo pai que estava no acidente e no hospital? Lendo rápido, essa história parece não fazer sentido algum!

Aqui entra a formação sutil da cultura. Nosso cérebro é tão acostumado a pensar de uma determinada forma, que muitas pessoas demoram a perceber que a “pessoa mais competente do centro cirúrgico” era a mãe do menino. Afinal, não é muito comum colocarmos mulheres na posição de “pessoas competentes” no imaginário popular. E logo você, que entende conscientemente que mulheres são seres tão capazes quanto homens, acabou caindo nessa armadilha do seu cérebro. O nome disso é cultura. Percebe agora como nem você está imune?

Se depois de tanta discussão de gênero e da sociedade ainda estar debatendo o papel da mulher, ainda não conseguimos desligar totalmente a área de nosso cérebro que correlaciona “posições de destaque” com figuras masculinas, imagina outras áreas que tomamos como normais e que pouco se debatem hoje em dia, como por exemplo, o nosso corpo.

Vivemos em uma sociedade gordofóbica. Uma sociedade que ama o corpo magro, acima de tudo. Que diz que todas as pessoas precisam ser magras, independente se esse não seja seu biotipo, ou se você precisa fazer uma dieta absurda para alcançá-la. Não interessa o que você vai fazer, contanto que você emagreça.

Querer emagrecer é uma vontade tão comum que parece inata. Todo mundo quer sempre perder um quilinho ou dois. Ninguém está satisfeito. Qualquer oportunidade que aparece, qualquer tratamento novo, ganha rapidamente uma fila infinita de seguidores. Não estamos preocupados com saúde (mesmo que esse seja um argumento que usamos para tentar validar essa vontade), estamos preocupados em ser aquilo que a sociedade nos diz que é certo. Fazemos tudo tão no automático que nunca nem paramos um segundo para pensar: “opa, pera aí, por que eu tenho que emagrecer?”, “Por que só pessoas magras são consideradas bonitas?” ou pior, “Por que eu me olho no espelho e me acho horrível?”.

Não paramos pra pensar porque emagrecer é uma daquelas decisões óbvias. Daquelas que não paramos pra decidir. Que já foram decididas por nós. Devemos ser nós mesmos, contanto que sejamos todos com corpo magro.

Podemos ficar parágrafos e mais parágrafos debatendo sobre a relação equivocada entre ser magro e ser saudável, sobre padrão de beleza, sobre a infelicidade ser necessidade básica para o consumo… mas depois de todas essas palavras, me contento em trazer a pergunta que prometi no título desse texto. Então, da próxima vez que você encontrar uma decisão dessas que parecem óbvias, como emagrecer, por exemplo, encontre um lugar tranquilo, respire fundo e se faça a seguinte pergunta:

“O que eu quero quando eu quero isso?”

Desculpe queridx leitorx. Agora que você sabe qual é a pergunta, talvez tenha notado que eu te enganei um pouco. Essa pergunta, sem dúvida, não vem sozinha. É como entrar no buraco da Alice e perceber tudo aquilo que está escondido atrás das decisões rápidas que tomamos. Essa é uma pergunta que convida mais a uma reflexão do que a uma resposta rápida, e pode sim, te levar a cada vez mais perguntas.

No entanto, não se assuste. Pode ser que uma pergunta dessas te salve de um processo que é muito comum quando escolhemos decisões óbvias: entrar em um ciclo de busca de alguma coisa que te sacie, sem nunca encontrar nada.

O padrão de beleza tóxico também está no plus size | Bernardo Fala

Se você acompanha o meio plus size, deve ter visto o post que a modelo Mayara Russi fez recentemente no Facebook. No relato, Mayara conta estar fazendo dieta para tentar chegar ao número 46. O motivo: mesmo sendo uma modelo bastante reconhecida no meio plus size e vestindo número 52, não consegue tanto trabalho quanto suas amigas mais magras.

Que um padrão de beleza existe na moda “regular”, a gente já sabe. Todo dia, modelos são obrigadas a emagrecer e atingir corpos cada vez mais irreais para desfilar nas maiores passarelas do mundo. A mensagem para a população é clara: só a magreza é bonita. Roupas são feitas para corpos magros. Quanto mais gorda, menos você se encaixa, menos opções você tem. Até o momento que você chega ali nos 42 e se torna praticamente invisível.

O mercado plus size, supostamente, teria nascido como resposta a essa exclusão: marcas que começam a suprir uma demanda de roupas para pessoas que não querem passar a vida inteira se odiando ou buscando um corpo que não é o seu. O problema é que, tanto as marcas “regulares” quanto as marcas plus size, convivem dentro do mesma cultura, dentro do mesmo padrão de beleza, e acabam se deixando influenciar por ele, por diversos motivos. Com isso, mesmo com toda a proposta de vestir pessoas que ultrapassam o número 46, é ainda comum vermos marcas que reproduzem a pressão estética da magreza até dentro das grades maiores, excluindo modelos que não sejam “quase magros” – ou tenham características de corpos magros como cintura fina e barriga chapada.

Sem perceber o tamanho da hipocrisia, essas marcas fazem corpos gordos serem constantemente apagados, invisibilizados, dando lugar exclusivamente àqueles que podemos chamar de “fora do padrão de beleza porém esteticamente aceitável”, pessoas que ultrapassam a grade “regular”, mas que também não são vistas como gordas pela sociedade.

E por que isso acontece? Porque o corpo gordo ainda é visto por grande parte da população como algo a ser escondido, excluído, e pior, combatido. Por visão estratégica, muitas marcas não querem enfiar o dedo nesse vespeiro. Querem aproveitar o mercado sem entrar de cabeça na briga do body positive. Querem explorar o setor aquecido plus size sem realmente exaltar um corpo que ainda não é visto com bons olhos pela sociedade. No final das contas, não estão interessadas em fazer grandes mudanças de cultura, ou de usar seu poder para incluir cada vez mais pessoas na moda e fazê-las se sentirem bonitas ou felizes. Essas marcas só estão interessadas no seu bolso. 

[blockquote author=”” ]”Não adianta ser body positive só quem com a sociedade já acha bonitinho ou aceitável. Ser body positive é exaltar o corpo em todas as suas formas”[/blockquote]

Não adianta ser body positive só quem com a sociedade já acha bonitinho ou aceitável. Ser body positive é exaltar o corpo em todas as suas formas. É bater de frente com a ditadura da magreza e dizer que todo corpo é bonito sim. Que todo mundo merece respeito e o direito de se sentir bem vestindo o que gosta. E não adianta dizer que “é só uma roupa”. Dar o direito de uma pessoa se sentir bem com o corpo que tem é muito mais que “só uma roupa”. É sair dessa posição de marca que só “aproveita uma demanda”, pra entrar na visão do negócio que trabalha em prol da sociedade e da construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Não adianta tentar fugir: vender é um ato político, consumir é um ato político.<

Toda vez que você compra algo, não adquire só um produto ou um serviço. Você diz para a sociedade que você quer ver mais daquilo no mundo. Que você concorda com aquela empresa e que você acha que ela deve ser um modelo a ser seguido. Por isso, da próxima vez que você encontrar mais uma dessas marcas fazendo “coleção plus size” sem colocar ninguém gordo nas fotos, lembre-se disso. Pra ela, você, pessoa gorda, continua sendo feia. Mas uma feia com dinheiro.


Compre de quem te exalta, não de quem te explora. Assim, não só pessoas gordas vão ter cada vez mais espaço na mídia, na moda e no imaginário das pessoas. Mas também, vão ter o direito de serem tratadas como qualquer outra pessoa. Pessoas como a Mayara não vão precisar modificar seu corpo para conseguir trabalho. Pessoas como você, pessoa gorda, que vai poder ser ainda mais feliz com seu corpo, tendo a certeza de que você, independente do seu tamanho, também é linda e merece ser representada.

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